As Sociedades Simples

Autor: Mauro Caramico

Conceito

De todas as críticas que têm sido feitas ao novo Código Civil, as mais ácidas talvez sejam as destinadas às novas sociedades simples: José Waldecy Lucena corrige-lhes a terminologia, aconselhando fossem chamadas sociedades não-empresárias, para oporem-se, mais claramente, às empresárias [1] ; Rubens Requião condena “a introdução da sociedade simples no direito brasileiro, sem raízes na tradição jurídica de nosso país” [2] ; José Edwaldo Tavares Borba vaticina que terá pouca aplicação [3] e Vera Helena de Mello Franco anuncia “o triste fim das sociedades limitadas no novo Código Civil” [4] , justamente porque a nova lei institui o capítulo da sociedades simples como regulamento subsidiário às limitadas.

Tantas foram as críticas que o Professor Miguel Reale bradou contra as “invencionices sobre o Código Civil” [5] , separando das sociedades simples, primeiro, as associações (porque aquelas são pertinentes à atividade econômica) e, depois, as as sociedades empresárias (porque aquelas “são as numerosas sociedades que reúnem os que exercem a mesma profissão, tal como se dá com advogados, engenheiros, médicos, etc.”).

Debates à parte, agora, legem habemus, e a mudança foi profunda. A lei, no entanto, não traz os requisitos objetivos que caracterizariam a sociedade simples, diferenciando-a da empresária. O conceito legal, por exemplo, é feito por exclusão: segundo o artigo 982, da nova Lei Civil, são simples as sociedades que não forem empresárias. E são empresárias aquelas que tiverem por objeto “o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro”. Nada, portanto, que ajude muito a definir os contornos da nova sociedade.

A lei, portanto, não enumera os elementos caracterizadores da sociedade simples. Como, então, decidir por uma ou outra sociedade? Há alguns caminhos.

Seguindo o acurado histórico que traça Vera Helena de Mello Franco, no artigo antes mencionado, a sociedade simples nacional derivou dos modelos suíço e italiano. Lá, a sociedade simples é modelo aberto, cuja característica mais relevante é a de que os seus participantes obrigam-se com a totalidade de seu patrimônio, solidária e ilimitadamente. Além disso, não se presta à condução de empresas comerciais.

Conquanto esses traços não estejam debuxados com clareza na lei nacional, servem para dar o tom: lá, com aqui, as sociedades simples estão muito mais próximas de serem sociedades de pessoas, do que sociedades de capital.

Além disso, impossível negar que há correlação entre as extintas sociedades civis e as novas sociedades simples – quem a realça, aliás, é o Deputado Ricardo Fiúza: “se adotarmos um paralelismo simétrico, a antiga sociedade comercial passou a ser denominada sociedade empresária, enquanto a sociedade civil, regulada pelo Código de 1916, passou a ser definida como sociedade simples.” [6]

Em contrapartida, as sociedades civis, como as tínhamos até hoje, prestavam-se, sobretudo, para aquelas atividades em que os chamados atos de comércio não eram regra. Esse traço distintivo, contudo, deixa de existir, doravante: não há empeço para que as sociedades simples pratiquem os atos de comércio (seja qual for a definição que se dê a eles) – só não podem ter escopo empresarial.

O escopo empresarial, enfim, passou a ser a pedra de toque.

Segundo a Exposição de Motivos do Código, na empresa “reúnem-se e compõem-se três fatores, em unidade indecomponível: a habitualidade no exercício de negócios, que visem à produção ou à circulação de bens ou de serviços; o escopo de lucro ou o resultado econômico; a organização ou estrutura estável dessa atividade”. Tudo o que não se enquadrar nesse conceito e, ainda assim buscar resultado econômico, será sociedade simples.

Ou, ainda com a Exposição, pode-se dizer que a empresa é, “a unidade econômica de produção”, ou “a atividade econômica unitariamente estruturada para a produção ou a circulação de bens ou serviços”.

O artigo 966, do Código novo, dá idéia clara da distinção: no caput, prevê que é empresário “quem exerce atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” e, no parágrafo único ressalva que “não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística”, a menos que o exercício da profissão constitua elemento de empresa.

O exemplo clássico é o da sociedade entre médicos: se dois médicos abrem um pequeno consultório, têm uma sociedade simples; se o consultório progride e transforma-se em clínica, com a contratação de enfermeiras e auxiliares, ainda será sociedade simples, dado que, sem as atividades dos sócios, a clínica não seria possível. Se, contudo, os médicos se unem para formar um hospital, com estrutura para o atendimento aos pacientes, com contratação de outros médicos, etc., então formariam uma sociedade empresária.

A chave, enfim, parece estar na estrutura organizacional: se a organização da sociedade prevalecer sobre as características profissionais de seus sócios, tratar-se-á de empresa. Se, por outra, as particularidades das atividades pessoais, profissionais, dos sócios forem essenciais para os negócios, então estaremos diante de uma sociedade simples.

Tipos

Segundo o artigo 983, do novo Código, a sociedade simples poderá ser pura, subordinando-se às suas próprias normas, ou poderá adotar “um dos tipos regulados nos artigos 1.039 a 1.092”, daquele Diploma.

Na verdade, apesar da remissão englobar, enganadamente, até as sociedades anônimas, além da sociedade simples pura, poderá haver a sociedade simples em nome coletivo, a sociedade simples em comandita simples e a sociedade simples limitada – tipo que, no primeiro momento da lei, tenderá a ser o mais comum, entre as simples.

A escolha entre um tipo e outro, no momento da formação da sociedade, é dos seus sócios. É que, por mais específicos que sejam os objetos sociais das empresas, poderão haver situações em que a distinção entre um tipo e outro (ou mesmo entre a sociedade simples e a empresária), não será visível.

Não parece possível, por isso mesmo, que o órgão registrário (as Juntas Comerciais, para as sociedades empresárias e os Cartórios de Registro, para as simples) possa impedir o registro de uma sociedade, por entender que deveria optar por este ou aquele tipo social - a menos que, no contrato social, já se perceba que a sociedade é regulada de acordo com um tipo, mas adotou outro.

Em contrapartida, a escolha do tipo inadequado poderá resultar em sociedade com defeito na conformação de sua personalidade, aplicando-se, por isso, as regras dos artigos 986 a 990, do novo Diploma (sociedades não personificadas), onde está prevista, por exemplo, a responsabilidade ilimitada e solidária, dos sócios.

A escolha da espécie e do tipo da sociedade, portanto, passa a ser um direito-dever dos sócios e, como tal, poderá ter conseqüências indesejadas, se mal exercido.

Responsabilidade Patrimonial dos Sócios

Segundo o artigo 997, inciso VIII, do novo Código, o contrato social da sociedade simples pura deverá esclarecer “se os sócios respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais”.

Há uma aparente contradição entre essa regra e a norma dos artigos 1.023 e 1.024, do mesmo Diploma, que parecem impor, como regra, a responsabilidade subsidiária dos sócios.

José Edwaldo Tavares Borba [7] entende que a regra da subsidiariedade só se aplica “quando acolhida no contrato a responsabilidade ilimitada dos sócios.” Ou seja, se o contrato social estipular que a responsabilidade dos sócios está limitada ao capital social, essa será a regra, cabendo ao terceiros, que contratarem com a sociedade, aferirem o nível de comprometimento dos seus componentes.

Contudo, se examinado o modelo estrangeiro, de onde partiu a inspiração para a nova Lei, a regra deveria ser, mesmo, a da responsabilidade solidária, reservando-se a possibilidade de limitação, apenas, para as sociedades que adquirirem outros tipos – especialmente a simples limitada.

Enfim, para resolver a aparente contradição, a interpretação que parece mais razoável é a de que apenas às sociedades simples não puras (às simples limitadas, às simples em nome coletivo e às simples em comandita simples) caberá optar pela limitação da responsabilidade de seus sócios. Para a sociedade simples pura, a responsabilidade deverá ser, sempre, ilimitada.

Algumas características

O exame de algumas das características das sociedades simples puras servirá para reforçar o seu conceito, uma vez que indicam a prevalência da pessoalidade sobre a estrutura organizacional.

A integralização do capital social, para começar, pode ser feita em dinheiro ou em serviços, a serem prestados pelos sócios. O sócio de serviços (ou de indústria, na denominação antiga), contudo, deve prestar serviços, à sociedade (artigo 1.006, do Código Civil), pena de ser excluído. Terá, ainda, algumas limitações, tanto no que concerne à participação nos lucros, quanto no que diz respeito à atuação de sua vontade nas deliberações sociais. São características próprias das sociedades de pessoas.

Quanto à administração, será sempre exercida por pessoas naturais, vedada a delegação de poderes (artigo 1.018, também do Código novo), mas não há a obrigação de que seja sócio. Se for, e se sua nomeação tiver sido feita no próprio contrato social, dificilmente poderá ser destituído: segundo o artigo 1.019, seus poderes serão irrevogáveis, salvo justa causa, judicialmente reconhecida.

Essa disposição também demonstra, inequivocamente, a natureza pessoal que se quis dar às sociedades simples, sobretudo àquelas que nascem do desforço profissional e individual de um (ou mais) de seus membros. E, se se pretender escapar a ela, bastará que a nomeação do sócio-administrador seja feita em ato apartado (em ata de reunião de, por exemplo, que deverá ser averbada), hipótese em que sua destituição pode ser feita em deliberação social, obedecido o quorum específico (maioria simples, se não houver estipulação contratual em outro sentido).

Além disso, como não se trata, de uma sociedade em que há prevalência dos capitais investidos, nem mesmo o minoritário poderá ser excluído da sociedade, salvo se a maioria assim decidir e obtiver provimento judicial, em que se deverá comprovar falta grave ou incapacidade superveniente (artigo 1.030). A exclusão extrajudicial, mediante simples alteração contratual, nas sociedades simples puras (como permitia a jurisprudência para as sociedades por quotas), não mais poderá ser admitida.

Conclusões

Talvez não tenha sido a solução mais natural trazer, para o Direito pátrio, a sociedade simples. Mas, se há dificuldades na sua compreensão, não é menos verdade que, antes dela, já havia era penoso separar as sociedades civis das comerciais, o que se fazia, apenas, pelo impreciso conceito de atos de comércio – basta relembrar as dificuldades que surgiam quando se cogitava da sujeição de uma empresa, ou outra, à Lei de Falências [8].

Agora, essa questão passa a ser de pouco relevo – não importa se a sociedade pratica, ou não, atos de mercancia, para que se determine a espécie a que pertence: a escolha, ao menos no primeiro momento, será dos sócios. Depois, dependerá de aferir-se se a sua estrutura organizacional suplanta a participação pessoal dos sócios.

E, dado o caráter personalíssimo das sociedades simples puras, servirão, sobretudo, para abrigar os profissionais que se unem em um escritório, em uma clínica, em um bureau, possibilitando-lhes, com maior segurança, colher os frutos de seus lavores, sem estarem amarrados a uma estrutura que, na condução dos negócios sociais, privilegie o capital.

Além disso, aqueles que contratarem com sociedade simples pura, perceberão que os sócios afiançam, automaticamente, as obrigações sociais regularmente assumidas e, certamente, terão mais tranqüilidade.

É provável que leve algum tempo, até que se firme a nova espécie, tão distante de nossos hábitos – até porque, nos últimos tempos, todas as sociedades têm sido vistas como técnica de segregação patrimonial, a que pouco se presta a sociedade simples pura. Mas será certamente muito útil, sobretudo àqueles que quiserem fazer transparentes, os seus negócios.

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[1] Das Sociedades Limitadas, 5a ed., Renovar, 2003.

[2] Curso de Direito Comercial, 1º vol., 25a e., Saraiva, 2003.

[3] Direito Societário, Renovar, 8a ed., 2003.

[4] Artigo “O Triste Fim das Sociedades Limitadas no Novo Código Civil”, da Revista de Direito Mercantil nº 123, julho/setembro de 2001.

[5] Artigo veiculado n’O Estado de São Paulo, disponível pela internet em

[6] Novo Código Civil Comentado, 1a ed., Saraiva, 2002.

[7] Op. cit., p. 76.

[8] A propósito, quanto à sujeição das simples puras ao Decreto-lei nº 7.661/45, é questão de que deverá cuidar a nova Lei de Recuperação de Empresas, já (ou ainda) em trâmite.

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